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2022-04-19 09:37:38 By : Mr. Colin Chen

Quem circula pelos corredores do terceiro andar do Mercado Novo, que, nos últimos anos, vem sendo paulatinamente ocupado por novas lojas, já deve ter esbarrado – e, talvez, se surpreendido –com o ateliê de fetichismo Tuft Squad, que abriu portas no lugar há cerca de um ano. A pequena loja vende produtos como chicotes, jockstraps, óleos, vibradores e itens com foco em representatividade LGBTQIA+. Mas nenhum deles chama tanto a atenção do público como as máscaras de couro que reproduzem uma estética animalesca. As peças são usadas por adeptos do pet play, um tipo de fetiche em que pelo menos um dos participantes desempenha um papel com características animais.  

“Esse fetiche começa no universo BDSM (sigla que denomina um conjunto de práticas consensuais como bondage e disciplina, sadomasoquismo, dominação e submissão), quando, no início do século passado, a figura do submisso em uma relação sexual começou a ser objetificada. Em algumas práticas, o dominador transformava sua parceria em um objeto, fosse um pufe para colocar os pés ou uma mesa para pôr um copo. E, às vezes, entrava essa questão animal, com ordens para que o outro agisse como um cachorro, para que comesse em um pote ou ficasse em uma jaula. Então, com o tempo, essa brincadeira foi sendo assimilada, foi ganhando maior aderência”, contextualiza Emilio. (não havia sido citado antes) 

Adepto da prática, ele considera que o pet play, hoje, já extrapolou os limites do BDSM, sendo um fetiche independente. “O jogo erótico que essa brincadeira propõe foi se tornando mais sofisticado. Se antes o submisso interpretava um animal qualquer, agora ele assume uma persona própria. O cachorro vai ter uma raça específica, vai ter nome e vai ter um temperamento seu, seja dócil, brincalhão ou raivoso”, observa. Além disso, até o dominador passou a também incorporar animais – geralmente, aderindo a uma vertente específica da prática, o ‘primal play’, em que há encenação de seres mais primitivos, como um lobo que lidera uma matilha ou um leão à frente de seu bando. 

Emilio pondera que o fetiche não tem nada a ver com a zoofilia, que é um tipo de conduta criminosa em que há exploração de animais para fins sexuais. “O que atrai e seduz no caso do pet play é ver um corpo humano em uma posição inusitada, que é a posição de quatro, que é se despindo da imponência e ocupando esse lugar imaginário de submissão ou de selvageria”, expõe, inteirando que, embora nem sempre acabe em sexo penetrativo, a brincadeira vai ser sempre erotizada – “senão, vira cosplay”, ri. “Tenho cliente que passa o dia inteiro sendo o pet da mulher dele, sem chegar ao ato sexual, mas, evidentemente, há uma conotação erótica ali”, pontua.

Ele também rechaça a pecha de esquisitões que costuma ser associada à comunidade fetichista. “Tem gente que vai dizer que é coisa de doente. Mas, pelo contato com o pessoal, não é o que vejo. Na verdade, percebo muito mais neurose sendo manifestada pelos baunilhas (gíria para pessoas que não estão inseridas na prática do BDSM e que não têm fetiches desenvolvidos) do que entre os fetichistas, que costumam ser bem resolvidos com o próprio desejo e identidade”, garante.  

Comercializando máscaras que imitam animais variados, Mauro Emilio observa que há certas nuances por trás de cada escolha. “De maneira geral, o fetiche parece ser um jeito de escapar daquilo que, no social, incomoda. É como se, ao usar uma máscara, essa pessoa pudesse se despir das fantasias que usa socialmente e colocar a nu traços da sua identidade que foram reprimidos ou vontades que foram contingenciadas”, analisa. 

“Por exemplo, percebi que, na maioria, os homens, cis ou trans, optam pelo dog play. O que pode ter a ver com certo bloqueio masculino em relação a demonstração de afeto. Então, se eles travam na hora de receber carinho, o cachorro, ao contrário, tem facilidade de demonstrar emoções”, pontua, citando que as máscaras de cães estão em alta. “São as favoritas também entre mulheres trans”, acrescenta. 

“Já o kitten play (quando o comportamento de gatos é mimetizado) é preferido de mulheres cis. Se a gente for pensar, esse é um bicho que só te escuta quando quer, que não cede às vontades do dono. Parece uma resposta dessas pessoas que foram criadas de forma muito regrada e rígida, sobretudo mulheres que sofrem com essa pressão de ter que agir de determinada maneira, sempre comedida”, avalia. 

“Os cavalos aparecem muito no contexto de casais heterossexuais. E vemos essa inversão aqui de novo. Se, nessas relações, o homem costuma ser pressionado a ser a autoridade e a mulher a ser quem obedece, quando estamos no ponysm e pony play (em que cavalos e éguas são encenados), ele passa a ser treinado por ela, obedecendo aos seus comandos”, conclui. 

“Por fim, tem três animais que são muito curiosos: um é o porco, que tem pouco a ver com imitar o animal, tendo mais a ver com a exploração dos fluidos corporais e cheiros. Com a máscara, a pessoa sente mais liberdade para usar o sujo, o odor e as excreções no jogo erótico”, comenta. “E há pessoas que brincam de coelho, que parece estar associado ao imaginário das coelhinhas da (revista) Playboy, que sempre tinha uma menina sensualizando com cinta-liga, meia arrastão e orelhas de coelho desenhadas”, reflete. “Por fim, os ursos são uma opção mais comum no caso de homens gays de corpo grande e peludo, que, na comunidade, já adotam essa forma de identificação”, sinaliza. 

Emilio ainda cita que muitos praticantes dizem redescobrir o próprio corpo ao entrar na brincadeira. “Uma coisa que eu percebo, usando a máscara, é como a gente passa a se ver com outros olhos. Normalmente, quando nos olhamos no espelho, a autocrítica é gigantesca. Mas, quando não é mais o nosso rosto ali, fica mais fácil ver as qualidades, entender que nosso corpo não é perfeito, mas que é, sim, bonito”, assegura. 

Os cachorros, gatos, coelhos, cavalos, ursos e porcos atraem os mais curiosos frequentadores do Mercado Novo em um misto de interesse e desconfiança. “Já ouvi falar de gente que olhou e fez cara de quem não gostou, mas eu mesmo nunca vi esse tipo de reação mais hostil. O que acontece é a pessoa entrar meio tímida, experimentar algo e, no final, sair levando alguma coisa”, comenta Mauro Emilio, que, além de dono, é o faz-tudo do lugar. “Sou artesão, eu mesmo faço as máscaras. Outros itens, eu negocio com pequenos produtores. E também fico na loja para atender clientes e tirar as muitas dúvidas de quem passa por aqui”, diz. 

Considerando as vendas feitas presencialmente, Emilio reconhece que as máscaras não saem muito. Mas, no comércio virtual, são concorridas. “Já vendi mais de 1.500 peças desde que comecei esse trabalho, em 2019”, relata o empreendedor, explicando que o material é feito de borracha siliconada revestida de couro, o que possibilita que os adeptos recebam carinho na cabeça, se movimentem com facilidade e usem a boca durante as brincadeiras. “Antes, tínhamos no mercado máscaras muito duras, de couro, que dificultam a interação, ou de neoprene, que têm pouca durabilidade”, diz, criticando que, no país, ainda há pouca oferta de produtos que atendam os fetichistas. 

O empreendedor explica que, além das máscaras, outros itens são utilizados, seja para fins de ornamentação ou de segurança. “Luvas e joelheiras, por exemplo, vão ser equipamentos funcionais, porque a pessoa vai passar muito tempo de quatro e, por isso, pode se ferir”, diz. “Rabos, que podem vir com plugs anais ou não, e roupas com pelagem também podem ser buscadas com fins mais, digamos, lúdicos”, relata. 

Foi devido à crescente demanda que Mauro Emilio abriu uma loja física. “Nos últimos anos, a demanda vem aumentando muito, de forma que eu não tinha mais como fazer tudo em casa de maneira confortável. Por isso, precisei abrir um espaço para a fabricação. E, já que estava aqui, achei que seria uma boa ideia colocar umas prateleiras e mostrar o meu trabalho para mais pessoas”, comenta. 

Atento à popularização da prática, ele acredita que, em suas próximas edições, desfiles de paradas do orgulho LGBTQIA+ de São Paulo e de Belo Horizonte devem ter alas específicas de praticantes do pet play. “É algo que já vemos lá fora”, pontua. 

Ele confirma que os adeptos costumam se organizar e acabam formando uma comunidade. “Quando você começa a entrar nesse universo, você descobre outras pessoas que já gostavam. E você vai tirar dúvidas com elas, vai tentar entender por que gostou daquilo. Logo, acontece uma aproximação, de forma muito espontânea. Hoje, há grupos de WhatsApp frequentados por sujeitos que têm fetiches em comum. Esses grupos acabam interagindo entre si, porque uma pessoa normalmente não tem um fetiche só. E, nos eventos, todos vão se conhecendo”, informa. 

Os encontros costumam acontecer em casas noturnas, sobretudo quando há festas temáticas. Em Belo Horizonte, um dos locais favoritos é a Lotus Lounge, no bairro Floresta. “E tem também eventos periódicos, como o Jantar Leather, que acontece em São Paulo, quando fetichistas, vestidos de couro e látex, se encontram para um jantar em uma hamburgueria”, diz, lembrando que os “pet players” devem se encontrar neste sábado (26), às 17h, na praça da Liberdade, na região Centro-Sul da capital. “Vi que tem pessoas vindo de outros Estados para participar”, anima-se.